Nunca usei roupa P. Nem mesmo quando nasci

Quem é você? Como assim quem sou eu? É, Maria Fernanda, quem é você? Ah, eu sou uma pessoa que faz regime desde quando nasceu e que não acredita nas pessoas que dizem usar roupa tamanho P. Essa sou eu.

Eu sempre duvido de alguém que diz que veste tamanho P. As roupas já deveriam começar no tamanho M. Eu nunca usei uma roupa tamanho P. Nem quando nasci. Tenho a sensação de que o que meu primeiro macacão já era G. Eu não vim ao mundo acima do peso o suficiente para que já pensassem: nossa, ela vai ser gorda. Mas com poucos meses meu pai, pediatra, me pegou nessa região que fica entre os ombros e o pescoço e que eu não sei o nome e comentou com a minha mãe “xi, nossa filha está acima do peso e corre o risco de ser gorda, melhor começarmos a controlar a partir de agora.” Por isso digo que ninguém entende mais de regime do que eu. Se eu tenho 32 anos, há exatos 32 faço regime. É uma vida dura, amigos.

Vocês podem até dizer “ah, mas você não é gorda.” Sim, eu sou. Acreditem. Só não estou no momento. Mais ou menos como os Alcoólatras Anônimos. Sabe aquela coisa: só por hoje eu não comi uma coxinha, só por hoje eu não faltei à academia, só por hoje eu estou magra. Magra, magra, não. Nunca fui e nem nunca serei. Dizem que para você ser uma pessoa magra de verdade é preciso parar de pensar gordo. Tenha dó. Como se isso fosse possível. Tem até livro com título assim. Mas isso é igual autoajuda, só serve para quem escreve ganhar dinheiro. O gordo lê, mas continua gordo. O depressivo lê, mas continua depressivo. Mas quem se importa? O dinheiro do livro foi pago. 

Meu pensamento é gordo. Gordíssimo. E ponto final. Ir para a academia às seis horas da manhã é para mim uma obrigação, assim como é trabalhar. Ah, vão falar que vocês gostam de ficar lá puxando ferro enquanto uns brutamontes ficam gemendo se olhando no espelho e mulheres metidas a Gracyane Barbosa desfilam nas suas calças de ginásticas brancas e transparentes? Eu não gosto nem de trabalhar e nem do ambiente de pessoas saudáveis. Mas eu frequento. Fazer o que? Gosto mesmo é de ser sedentária. Se pudesse, não sairia do sofá. Um dia perguntei ao meu pai se eu poderia ser considerada obesa na infância e sem pestanejar ele respondeu "Sim, claro que sim." Lembro desse dia. Estávamos sentados no quintal de casa. Era um dia de churrasco em família e bebíamos cerveja. 

Pois é. Voltando. Sempre perco o foco. Acostumem-se. Fazendo regime desde um ano de idade - mãe, por favor me corrija se eu estiver errada – já experimentei de tudo. Quando digo experimentar de tudo me refiro a dietas, claro. Dos pontos, da lua, do sol e do mar. Do inverno, do verão, do outono e da primavera. Da sopa, da proteína e do carboidrato. Diet Shake, Vigilantes do Peso e Herba Life. Leite, só desnatado. Pão? Desde que seja sem miolo. No lugar do açúcar, o adoçante. Chocolate nem pensar. Bolacha recheada nunca. Na lancheira da escola, uma maçã e biscoitos de água e sal. Jazz, balé, natação, patins, corda e bicicleta. Qualquer coisa que fizesse a gordinha se mexer e perder algumas calorias e, claro, quilos. Muitos quilos.

Apesar de crianças serem maldosas com amigos gordos, não me lembro de ter sofrido muito preconceito. Umas piadinhas infames aconteciam até que com alguma frquência, mas eu era querida entre os colegas. Gordinhos sempre são queridos. Tenho essa impressão. Como eu era legal, eles me davam bolachas recheadas na hora do recreio. E minha mãe, tão empenhada, achando que eu só comia os biscoitos de água e sal. Aqueles que já mencionei lá em cima. Às vezes até vinham com requeijão – light, claro – ou uma miséria de margarina.

No dia que minha mãe me deu um tomate para comer, eu fingi que comi. Mas ela o encontrou intacto no lixo do banheiro. Pegava a minha bicicleta Ceci amarela com cestinha cor de rosa e ia comprar escondida paçoca e sonho de valsa na quitanda a dois quarteirões de casa. Mas a forma de pagamento era a caderneta da minha mãe e ela sempre descobria no final do mês a minha travessura. Estava explicado porque nenhum quilo se ia nas aulas de natação. Mas que menina rebelde, dizia a minha mãe. A japonesa dona da quitanda um dia desconfiou de mim e perguntou “sua mãe sabe que você compra com a caderneta dela, menina?” E eu prontamente respondi “mas é claro, a senhora por algum acaso está desconfiando de mim?” Menti.

Devido ao sobrepeso, está pregada no mural de família da casa dos meus pais uma das fotos mais emblemáticas da minha infância: eu, numa fantasia de zebra que era apenas um short e um top. Se não me engano, era uma roupa usada na apresentação do jazz que foi adaptada para o Carnaval. O fato é que ao lado do meu irmão loiro, magro e de olhos azuis, estava a caçula, com uma barriga de não causar inveja a nenhum mortal. Mas papai, sabe-se lá porque, não teve dúvidas na hora de fixar aquela imagem no mural. Está lá até hoje. Fica no corredor principal da casa. Todas as visitas têm acesso. Trauma superado. Bola para frente.

Um dia, cansei de ser gorda. Em dois meses emagreci 18 quilos. Parei de comer e não saía da academia. Estava no segundo colegial, tinha 16 anos, e a única obrigação era colocar o meu shorts de ginástica e a camiseta velha que ia até o joelho, que tanto poderia ser usada como pijama ou como pano de chão. Aos poucos, todas as minhas roupas iam escorregando do meu corpo e ajustes já não seriam suficientes. Deixei de calçar 37 e comecei a usar 35. Nunca mais pisei numa balança. Se perguntarem o meu peso hoje, não sei responder. Pode ser dos 50 aos 70 quilos. Aniversário retrasado, uma amiga me presentou com uma blusa vermelha, de alças, tamanho P. Antes de provar, já procurei qual era o nome da loja para trocar pela M. Como pode alguém achar que caibo numa roupa desse tamanho? Fui até a loja, mas a vendedora insistiu para que eu vestisse aquela peça mesmo. Resolvi provar a ela a minha tese de que “eu nunca usei roupa P, nem mesmo quando nasci” e, por isso, vesti a blusa vermelha de alças. Serviu. Serviu, meu Deus, serviu.

- Falei pra você que ia servir, disse a vendedora loira de seios fartos e lábios com botox. Nossa numeração é maior. Nossos tamanhos P são como se fossem M.

- Obrigada, respondi. 

E fui embora com aquela blusa P embaixo do braço. Já faz dois anos que ela está na gaveta. Nunca foi usada. Vou colocar na sacola de doação assim que chegar em casa.

E quando você acha que ninguém viu...

(Para entender esse texto, primeiro é preciso ler o que está abaixo dele. Vai lá.)

Ela jura que ninguém viu nada. É o tipo de gente que deve se enganar com tudo na vida. E fica espalhando isso, como se fosse uma vitória. Vitória? A menina sai de lá sangrando, toda ferrada, e ainda acha que foi a glória ninguém ter visto. Eu vi. Vi tudo. Tudinho. Desde a hora que ela virou a esquina e entrou na rua. A rua da amargura. Não chama rua da amargura não, antes que vocês achem que se trata de uma piada. De mau gosto, claro. Mas é como se fosse. Como se fosse uma piada, de mau gosto, e como se fosse mesmo a Rua da Amargura.  E não estou falando isso por ela não. Mal a conheço. Estou falando isso por mim, que sou obrigada a conviver diariamente com os carros passando em alta velocidade. E as buzinas? Meu Deus, como vocês são chatos. Não vou nem falar da fumaça porque já devem estar cansados desse papo: trânsito, engarrafamento, poluição.

Assim, não posso dizer que fiquei com dó dela. Dó. Tenho dó é de mim, que vim parar aqui depois de uma briga com a família e a Capital foi o que me restou. Não sei vocês, mas eu acordo bem cedo para trabalhar. A minha vida é bem dura viu? Se fosse no Interior tudo seria mais fácil. Mas aqui em São Paulo ninguém dá a mínima pra gente. Mas, voltando à história da Maria Fernanda. É esse o nome dela né? Então, foi bem engraçado. Dei tanta risada que até chorei. Tenho dessas: toda vez que rio muito, lágrimas saltam dos meus olhos, como nos desenhos animados.

Mas todos riem  – riem não, gargalham – toda vez que ela se estatela no chão. Vocês precisavam ver a cara dela olhando o sangue que tomava conta da jaqueta branca que ela usava. Parecia novinha a jaqueta. Hahahaha. Tomou o cotovelo todo. Estou rindo pela cara dela e não pelo sangue. Parecia se importar mais com a jaqueta do que com os machucados. Menina louca. Menina. Acho que ela nem é mais menina. Deve só estar disfarçando a idade. Mas de onde ela tirou a ideia de comprar uma jaqueta branca? Que tipo de gente usa uma jaqueta branca? Será que nenhuma amiga a avisou que jaquetas devem ser de cores escuras?

Bom, vou parar de julgar e me atentar aos fatos da história: Estava lá eu, só observando o movimento, quando a vi chegando. De fones de ouvido, ela cantava alto. Um amigo me disse que já tinha encontrado essa Maria Fernanda correndo no Ibirapuera algumas vezes e que ela canta sozinha mesmo por aí. Acho que estava ouvindo rock´n roll porque também mexia as mãos, como se tocasse uma bateria.  De repente, do nada, ela caiu. Caiu, não. Voou. E olha que entendo sobre voos. É, é sim. Ela voou. Não estou exagerando. Juro.  Fiquei só observando todo o movimento. Ela iria cair de cara no chão, mas conseguiu se virar. Não tinha como eu ir ajudar. Até tinha vai. Mas eu estava ocupada no momento. Pensei que se ela não se levantasse em alguns segundos, eu tentaria fazer algo. São Paulo deixa a gente assim, meio egoísta mesmo.

Antes de se levantar, percebi que ela estava falando sozinha, olhando pra cima. Mas não era comigo que ela falava. Raramente sou percebida nessa selva de pedras. Menina louca. Menina não. Já disse que ela não é mais menina? Que só disfarça a idade? Então, ficou lá, apontando o dedo pra cima e balbuciando algumas palavras. E como gesticulava. Estava bem brava. Mas eu não entendo direito o que as pessoas falam. Ei, não me chama de surdo não. Surdo é você.

Ela levantou. Olhou a mão ensanguentada e tirou a jaqueta. Ai, quanta preocupação com essa jaqueta. Materialista! O cotovelo sangrava. Amarrou a jaqueta na cintura. E saiu correndo. Só consegui ver até ela virar a esquina. Aí sumiu. Uma semana depois a vi de novo. No mesmo momento quando ela virava a Rua da Amargura. Vinha do mesmo jeito: cantando alto. Ela parou no mesmo local da queda. Ficou olhando para o chão durante poucos segundos. Agachou. Olhou mais um pouco. E saiu correndo de novo. Nunca mais a vi por lá. Deve ter mudado o trajeto. Sei lá. Tem gente que pega trauma.


Daqui uma semana, eu me mudo novamente. Meus filhotes já nasceram e vamos voar pelo mundo. Não é fácil ser uma maritaca em São Paulo. 

Quando até o Céu ri de você

Eu tropeço e caio na rua como uma criança que tenta chupar um sorvete em um dia de Verão. Acredito que isso aconteça mais comigo do que com todos os demais seres desse planeta. Sempre rio dos meus tombos, mas confesso que estou começando a perder o humor. Não necessariamente toda vez que eu tropeço, eu caio. Às vezes é só um tropeço mesmo.  Ou uma virada de pé. No começo, achava que a culpa era minha. Sei lá, talvez eu tivesse uma perna mais curta que a outra. Foi o que uma amiga me disse certa vez. Mas de uns tempos para cá tenho certeza que as calçadas são as vilãs. Sou apenas uma vítima.

O interessante de cair - se é que há algo de interessante nisso - é ver a reação das pessoas. Muitos, mas muitos mesmo riem de você e só depois chegam para perguntar se está tudo bem. As mulheres são as piores. Gargalham sem dó e nem piedade. Independente da classe social. Os homens não. Estão sempre dispostos a te levantar do chão. Sempre há uma mão masculina para te socorrer. Na verdade, eu nunca precisei de ajuda para me levantar dos meus tombos. Mesmos porque, quando você cai, a primeira reação é levantar e sair correndo e rezar para que ninguém tenha visto. Mas sempre tem um ser que registra a cena toda. Parece que ele estava lá esperando por isso. Eu nunca vi ninguém caindo. Nunca. Se um dia isso acontecer, não sei qual será minha reação. Talvez eu gargalhe muito. Afinal, vingança é um prato que se come frio.

Tudo estava sendo levado com muito humor até o último tombo. Tombo não. Voo. Porque eu voei. E, sem asas, me estatelei no chão. Eu tinha acordado às seis da manhã para correr, como faço três vezes por semana. Às vezes duas, às vezes quatro, às vezes uma. Ventava. Decidi correr de calça e usar a minha jaqueta corta-vento-nova-linda que eu tinha acabado de trazer de New York. Era nova. Novíssima.  E branca.

Decidi fazer um trajeto novo porque aquele percurso do Parque do Ibirapuera já me causava um certo desconforto. No quilômetro 2,33 foi onde tudo aconteceu. Não perguntem qual foi a causa do tropeço. Eu simplesmente não sei . Sei que nunca vivenciei nada parecido.  E não, não tirei nenhuma boa lição dessa história. Mas, o que me chama a atenção nos tombos são os pensamentos que te acometem naqueles fragmentos de segundo entre o tropeço, o voo, e a queda em si.  Naqueles brevíssimos instantes eu consegui pensar:

- Será que ainda dá tempo de eu fazer algo para não cair? Não. Eu vou cair.
- Que eu não caia com a cara no chão, que eu não caia com a  cara no chão.
- Bem que minha prima me disse que não era para eu comprar essa bendita jaqueta branca 

E, então, a queda. Lá estava eu estatelada no chão, de lado, com o rosto intacto. A primeira coisa que fiz foi olhar para os lados. Ufa, a rua estava vazia e ninguém tinha visto.  Olhei para o meu cotovelo e as manchas de sangue já tinham atravessado o pano fino da jaqueta-corta-vento-nova-linda, e branca, que eu tinha acabado de trazer de New York. Lembrei da minha prima de novo. Certeza que ela vai falar: “Falei que não era pra você comprar a jaqueta branca, Mariaaaaa.” Olhei para a minha calça. Estava quase rasgada. Minha mão esquerda sangrava em dois diferentes lugares. Eu tinha sido assaltada três dias antes e considerei aquele tombo uma verdadeira afronta. Caída no chão, olhei pra cima e pensei: “Vocês estão de sacanagem comigo. Só pode ser. ” Com quem eu estava falando? Sei lá. Com os deuses, espíritos, gnomos, duendes, Deus. Sei lá. Mas que estava com cara de sacanagem, ah, estava. Fiquei imaginando esse povo todo lá em cima, no Céu, rindo da minha cara.


Ainda faltavam oito quilômetros para eu completar os dez, que é o quanto corro sempre. Às vezes mais, quase nunca menos e quase sempre dez cravados. Eu não poderia voltar pra casa daquele jeito, sem nenhuma dignidade. Afinal, eu tinha acordado às seis horas da manhã com um propósito e ele não havia sido cumprido. Levantei. Olhei para o chão rapidamente para tentar descobrir se tinha sido um buraco, um relevo ou uma pedra o responsável por aquela cena. Não identifiquei nada. Decidi continuar correndo até completar os dez quilômetros.  Tirei a jaqueta corta-vento-ex-nova-linda, e branca, e amarrei na cintura. O cotovelo em carne viva. A mão também.  Sem um puto, não consegui nem comprar uma água. Lavei o machucado rapidamente na torneira do banheiro do Ibirapuera. E corri, corri, corri. Meu iPod tocava Queen. 12 quilômetros no total. Na hora de tomar banho, doeu. Chorei. De dor e de raiva. 

Uma semana depois, quando voltei a correr, decidi passar pelo mesmo lugar pra ver se eu descobria qual tinha sido a causa do acidente. Nada, não descobri nada. Nada. Na-da. Eu devo mesmo ter uma perna mais curta do que a outra. Talvez a minha amiga seja a única que tenha razão nessa história toda.

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Jornalista. Ardida. Gosta de livros, música, Mafalda, São Jorge, sorvete, corrida e bicicleta. Canta sozinha na rua e conta helicópteros no céu.

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